O que não se aprendeu com a tragédia no Rio Doce

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Apesar dos riscos e da tragédia da Samarco, o licenciamento ambiental de barragens de rejeito vem sendo feito de forma pouco rigorosa no Brasil. Entre os problemas estão o subdimensionamento das áreas de influência, a desconsideração dos potenciais danos a comunidades e a avaliação insuficiente de alternativas tecnológicas


Bruno Milanez, Luiz Jardim Wanderley e Tatiana Ribeiro | Le Monde Diplomatique

É de amplo conhecimento que a extração mineral gera impactos negativos sobre o meio ambiente e as pessoas que vivem em seu entorno. Entre esses impactos, a geração de rejeitos passou a ser discutida no Brasil após a tragédia decorrente do rompimento da barragem do Fundão, em Mariana (MG). Apesar do crescente questionamento, grandes mineradoras continuam insistindo no uso de barragens para a destinação de rejeitos.


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A geração de resíduos é um processo inerente à mineração. As reservas de ferro no Brasil possuem um teor médio de 51%; para o alumínio, a concentração cai para 44%; no caso do ouro, é inferior a 1%. O que não é minério precisa ser depositado em algum lugar, pois não apresenta valor econômico para as mineradoras. Os efeitos sociais e ambientais desses descartes são variados, causando contaminação de corpos de água e, no caso de falhas de barragens, destruição de rios e morte de pessoas.

Um dos casos mais famosos ocorreu no vale do Rio Ok Tedi, em Papua-Nova Guiné. Nos anos 1980, depois de um deslizamento durante a construção de sua barragem, a mineradora BHP (futura BHP Billiton) passou a lançar os rejeitos diretamente no rio. O caso ganhou notoriedade quando as comunidades locais processaram a mineradora na Austrália, uma vez que o governo local não se mostrava disposto a enfrentar a empresa. Após um longo processo judicial, a BHP e as comunidades assinaram um acordo, e a companhia transferiu suas ações na mina para uma fundação com sede em Cingapura, reduzindo os riscos de questionamentos sobre futuros impactos.

No Brasil, um evento semelhante ocorreu no Pará, também na década de 1980, quando a Mineração Rio do Norte (MRN) – então uma empresa formada pela Vale, Companhia Brasileira de Alumínio e mais sete mineradoras estrangeiras – lançou por quase uma década o rejeito do beneficiamento da bauxita diretamente no Lago Batata, tributário do Rio Trombetas. Em 1989, a MRN foi obrigada a iniciar um programa de recuperação que, apesar de estar em andamento há mais de vinte anos, ainda não conseguiu recuperar plenamente o sistema ecológico do lago.

Juntamente com a legislação de controle ambiental, as formas de lidar com o rejeito foram evoluindo, e o uso de barragens foi se difundindo. Mas a “solução das barragens” não impediu que a destruição ambiental em consequência dos rejeitos continuasse ocorrendo, principalmente por causa das falhas desses sistemas. Entre 1990 e 2016 foram identificados 105 incidentes de barragens no mundo; todavia, essas ocorrências não se deram igualmente ao redor do globo. Assim, 64% das falhas e todas as mortes decorrentes desses eventos foram registradas em países periféricos.

As ocorrências de incidentes com barragens de rejeito têm diminuído, mas os eventos estão cada vez mais violentos e afetando áreas mais extensas. Isso se deve, sobretudo, ao crescimento do volume minerado, que leva à construção de barragens maiores e, consequentemente, com maior potencial de destruição.

No Brasil, uma divisão desigual do risco também se verifica; 80% das barragens existentes em Minas Gerais se encontram em setores censitários com predomínio de população não branca, caracterizando uma distribuição desproporcional do risco com base na variável raça. Por exemplo, em Mariana, nos dois povoados mais afetados pelo rompimento da barragem do Fundão, Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, 84% e 80% da população, respectivamente, declararam-se de cor parda ou preta no último Censo.

O uso de barragens de rejeito depende da escolha das empresas. No Brasil, a principal tecnologia para beneficiamento de minérios ferrosos é a “via úmida”, na qual o minério é separado por diferença de densidade. Esse processo consome grande quantidade de água e ainda gera rejeito na forma de lama, exigindo a construção de barragens.

Entretanto, existem tecnologias de adensamento e filtração que retiram o excesso de água e permitem que os rejeitos sejam dispostos em pasta ou em estado seco. Nessas formas, em caso de rompimento das barragens, o impacto socioambiental seria significativamente menor. No caso do minério de ferro, há ainda o beneficiamento a seco, que não consome água e não gera rejeito lamoso. Segundo a Vale, essa tecnologia “é relativamente simples e não exige grandes adaptações das plantas”. Apesar disso, novos projetos vêm sendo aprovados sem incorporar o deságue dos resíduos.

Daniel Franks, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, compara o deságue de rejeito com navios petroleiros de casco duplo. Ambas são tecnologias viáveis e disponíveis, que reduzem os riscos e a gravidade dos impactos. Porém, enquanto as petroleiras aceitaram incorporar a nova tecnologia após o vazamento do Exxon Valdez, no Alasca, em 1989, as mineradoras resistem em adotar o deságue.
 Na mineração, Franks reforça que a diminuição do volume de rejeito, o maior aproveitamento da água e a redução dos gastos com monitoramento ambiental muitas vezes tornam essa tecnologia economicamente viável, contestando a percepção de elevação de custos.

No Brasil, a frequência e a gravidade dos rompimentos de barragem vêm crescendo de forma significativa. Entre 2001 e 2015 ocorreram sete falhas graves de barragens somente em Minas Gerais. A mais importante foi o rompimento da barragem do Fundão da Samarco (joint-venture da Vale S/A e da BHP Billiton), em Mariana.
Apesar dos riscos, o licenciamento ambiental de barragens de rejeito vem sendo feito de forma pouco rigorosa. Entre os problemas estão o subdimensionamento das áreas de influência, a desconsideração dos potenciais danos a comunidades e a avaliação insuficiente de alternativas tecnológicas. Essas falhas foram identificadas tanto no licenciamento da barragem do Fundão como nos estudos de impacto ambiental (EIAs) apresentados para o licenciamento da barragem Maravilhas III (antiga barragem Congonhas), da Vale, e da unidade de disposição de rejeitos Alegria Sul, da Samarco.

A área de influência do Fundão foi arbitrariamente definida como os municípios de Ouro Preto e Mariana, desconsiderando a possibilidade de o rejeito chegar ao Rio Doce. O EIA de Maravilhas III repetiu o mesmo equívoco, restringindo a área de influência a Itabirito e Nova Lima e ignorando que o rejeito, em caso de rompimento, atingiria a bacia hidrográfica.
No caso de Alegria Sul, o EIA desconsidera os impactos que a Samarco já causou e limita a área de influência a Mariana, Ouro Preto, Santa Bárbara e Catas Altas. Assim, a empresa evita debater a retomada de suas atividades e a condição de risco com as comunidades atingidas ao longo do Rio Doce.

Questões críticas também surgem na escolha do local de instalação. No caso do Fundão, entre os três locais listados no EIA foi escolhido o único que poderia causar o rompimento em cadeia de outras barragens (Germano e Santarém) e o que estava na menor distância de Bento Rodrigues. A mesma desconsideração ocorreu no EIA de Maravilhas III: a Vale pretende construí-la a montante da barragem de Maravilhas II (também da Vale) e da represa de Codornas (da mineradora Anglo Gold Ashanti), que poderiam romper em decorrência de falha de Maravilhas III. No caso de ruptura, o rejeito atingiria áreas residenciais em menos de trinta minutos. Para Alegria Sul, se houver falha do dique, o rejeito pode atingir Santa Rita Durão, núcleo urbano com quase 1.500 habitantes. Essas escolhas das empresas elevam o potencial de destruição das barragens e os riscos para as populações próximas.

De acordo a legislação, os EIAs devem apresentar alternativas à tecnologia adotada e justificativas para sua escolha. Esse quesito vem sendo negligenciado nos estudos para disposição de rejeitos de mineração. No caso do Fundão, a avaliação de alternativas tecnológicas somente ponderou sobre o método construtivo e o material a ser usado na barragem. O EIA de Maravilhas III considerou tecnologias de deságue, porém elas foram descartadas por gerar “inconvenientes”, como tráfego de caminhões e movimentação de material. Por fim, o EIA de Alegria Sul apenas debateu o método construtivo do vertedouro, sem incluir o deságue do rejeito. Ainda, o estudo não mencionou o beneficiamento a seco, apesar de a Vale planejar adotar essa tecnologia em sua unidade de beneficiamento em Mariana.

Falhas dessa natureza estão, de certa forma, por trás da intensidade do desastre no Rio Doce. Apesar de os processos de licenciamento de Maravilhas III e de Alegria Sul serem posteriores à tragédia, os problemas identificados em seus estudos não vêm sendo questionados pelo poder público. A barragem de Maravilhas III recebeu sua licença prévia em junho de 2016. No caso de Alegria Sul, as primeiras audiências públicas ocorreram em Ouro Preto em 14 de dezembro de 2016 e em Mariana um dia depois. No caso de Mariana, a audiência foi marcada para uma quinta-feira, dia em que os moradores desalojados de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo regularmente se reúnem com a Fundação Renova para debater seu reassentamento. A coincidência das datas e a falta de informação diminuíram consideravelmente a participação dos atingidos na audiência.

De certa forma, a permissividade do Estado se deve à construção de uma relação promíscua entre governos e empresas mineradoras. Ela está relacionada, em grande parte, ao tráfico de influência que era potencializado pelas doações empresariais às campanhas eleitorais, admitidas até a reforma eleitoral de 2015. Mais do que buscar obter poder por meio dos cargos eletivos, as empresas mineradoras financiavam campanhas de candidatos de diferentes partidos, garantindo sua influência independentemente do resultado. Por exemplo, em 2014, empresas do grupo Vale doaram R$ 79,3 milhões a comitês financeiros, diretórios e candidatos, sendo os maiores volumes destinados aos três partidos que chegaram ao segundo turno das eleições presidenciais ou que foram eleitos nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo: o PMDB (R$ 23 milhões), do candidato a vice-presidente Michel Temer e do governador eleito do Espírito Santo, Paulo Hartung; o PT (R$ 19,3 milhões), da candidata vencedora Dilma Rousseff e do governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel; e o PSDB (R$ 9,5 milhões), dos candidatos derrotados e senadores Aécio Neves (para presidente) e Aloysio Nunes (vice-presidente). Essa prática se reproduzia em todas as esferas federativas e em ambos os poderes (Executivo e Legislativo), tornando seus agentes defensores dos interesses do capital privado e comprometendo a atuação do poder público na defesa da sociedade.

Com o cenário político cuidadosamente controlado pelas empresas, os EIAs contratados pelas grandes mineradoras continuam insistindo no pressuposto de que barragens de rejeito seriam a “única solução”, ainda que tais estudos apresentem falhas recorrentes, as empresas disponham de tecnologias para a prevenção ou tratamento dos rejeitos e os dados indiquem o crescimento dos danos gerados pelas falhas de barragens de rejeito. Assim, enquanto os poderes públicos continuarem sendo coniventes com tais processos, a população das regiões mineradoras continuará vivendo sob constante risco de novas tragédias, como a que destruiu o vale do Rio Doce em 2015.

*Bruno Milanez é professor da Universidade Federal de Juiz de Fora e Luiz Jardim Wanderley é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; ambos integram o Grupo de Pesquisa Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS). Tatiana Ribeiro de Souza é professora da Universidade Federal de Ouro Preto e coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Socioambientais (Gepsa).

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