Míriam Leitão e Sebastião Salgado - O Globo
A ponte estava queimando e do lado de lá do fogo estavam uns 50 homens contratados pelos madeireiros; vários deles pistoleiros conhecidos da região. Os homens apontaram suas armas para a Polícia Federal, Força Nacional, Ibama e Funai, que vinham, em comboio, trazendo abundantes provas de crime de desmatamento em terra indígena em 17 caminhões apreendidos, motosserras, motocicletas, tratores e 35 presos.
Era madrugada num povoado perdido no Maranhão com o nome de Varig. E aquilo era uma emboscada. Os madeireiros e seus jagunços levaram a melhor no confronto. O Estado brasileiro teve que recuar. O lado da lei era mais fraco do que o exército organizado pelo crime.
O espantoso fato, que hoje faz parte de relatórios, me foi contado por Claudio Henrique Santos de Santana, 49 anos, há 28 anos funcionário da Funai e, naquele momento, motorista do primeiro caminhão. Aconteceu em junho do ano passado e merece ser relatado para se entender com que desenvoltura o crime de desmatamento age impunemente no Maranhão. Os representantes do Estado brasileiro tentaram dialogar. Foi inútil. Em silêncio, com a ponte em chamas, as armas apontadas, o crime foi mais eloquente.
O dia havia começado bem cedo. Na Aldeia Juriti os índios repetiram para os policiais, com a ajuda de Patriolino Garreto - chefe do posto, na tradução da lingua guajá - que estavam ouvindo o barulho dos tratores e das motosserras na floresta.
Ninguém ouvia nada, mas ninguém duvidava. Os Awá têm uma acuidade auditiva muito superior à de qualquer outro ser humano. Eles desenvolveram, ao longo dos séculos de sua história de fuga e movimento na mata, uma capacidade de ouvir além do normal.
Escolheram dois índios mais velhos para servir de guia. Patriolino foi junto. Atrás os seis integrantes da Força Nacional, um funcionário do Ibama e três da Funai. Os três da Polícia Federal e outro funcionário do Ibama ficaram na Aldeia Juriti.
Já havia começado uma operação de prisão de madeireiros na região, na qual tinha tomado parte Hélio Sotero, que hoje está na chefia da operação de retirada dos não-índios da terra Awá. Durante a operação, chegou até ele o alerta dos índios sobre a presença de madeireiros na floresta. Assim se organizou o grupo que foi até a Aldeia Juriti apurar o que eles estavam informando.
- Viemos de Santa Inês, até a casa do seu Raimundo Porca. - contou Santana, referindo-se a um posseiro antigo, vizinho da terra indígena, que tem sido aliado da Funai.
- Mandamos a bagagem por barco e viemos a pé para a aldeia. Na manhã seguinte, saímos. Os índios na frente, e nós, a pé, atrás. Andamos 20 quilômetros pela floresta até avistarmos o acampamento. Ouvimos então o barulho da motosserra cortando as árvores e o trator de esteira fazendo o limpo para pôr as toras - descreve Claudio Santana.
Eles mandaram os índios voltarem à aldeia para não expô-los aos riscos de serem depois reconhecidos pelos madeireiros. Patriolino, com eles.
- Nós ouvimos o barulho de um caminhão se aproximando. Tinha um tronco de árvore caído e nós o colocamos para bloquear o caminho. O caminhão parou no tronco. Nós, que estávamos escondidos no mato, aparecemos e o abordamos. Estavam o motorista e o ajudante dele, o catraqueiro, que usa a catraca para pegar os troncos. Fizemos essa primeira apreensão, tiramos a tora, e fomos no caminhão, escondidos, com o motorista dirigindo para não assustar as pessoas do grupo. Quando o caminhão encostou, as pessoas vieram falar com o motorista e nós aparecemos e prendemos todos - relata Claudio.
Eram cinco pessoas no acampamento, duas motosserras, duas motocicletas cross novinhas e um trator. Os bandidos conseguiram travar o trator, mas sob a ameaça da Força Nacional foram conduzindo todos para os outros acampamentos. Foi assim o dia inteiro. Ao todo, conseguiram chegar em mais sete acampamentos. Pegaram três tratores de esteira, armas, motos, motosserras, 16 caminhões e prenderam 35 pessoas. Quatro caminhões não puderam ser levados porque os motoristas conseguiram travar o motor.
- A gente passou o dia e anoiteceu nessa operação. Ninguém parou para comer, para descansar, eram três e meia da manhã, nós estávamos viajando quando vimos na estrada um carro cheio de toras.
Eram os nossos três companheiros da Polícia Federal e um do Ibama, que havia saído da Aldeia Juruti pelo outro lado e apreendido aquele caminhão. Estavam nos esperando. Aí formamos esse comboio de 17 caminhões. Nossa intenção era soltar no povoado de Varig pessoas que não tinham a ver diretamente com o crime, como a cozinheira. Ou os peões que não nos levariam aos cabeças do crime.
A próxima parada seria Buriticupu, uma famosa cidade madeireira. Depois, uma cidade maior: Santa Inês, onde deixariam os presos e o fruto do crime.
- Eu dirigia o caminhão da frente, quando entrei no povoado e avistei a ponte em chamas. Era a emboscada. Eles queimaram a ponte para nos deter e ficaram de tocaia - disse Cláudio.
O comboio dos 17 caminhões e tratores parou. Não havia por onde escapar. As autoridades tentaram conversar, outros foram verificar se dava para passar pela ponte, mas as tábuas já estavam se desfazendo.
Do lado de lá os bandidos estavam em maior número, com melhor armamento, e maiores chances. Não havia o que fazer.
Do lado de cá eram apenas os funcionários da Funai que não portam armas, dois do Ibama, e os nove integrantes da Força Nacional e Polícia Federal.
Os bandidos exigiram a soltura de todos os presos e abandono dos caminhões e tratores. Era fazer isso ou iniciar o tiroteio.
- Estávamos em menor número e não tínhamos armas suficientes. Deixamos tudo lá e fomos de carro, por outra estrada, pensando em fazer um contorno até Buriticupu para relatar o ocorrido.
A estrada levava ao povoado com o nome de Aeroporto mas não ia até Buriticupu. Eles tiveram que voltar e quando chegaram, encontraram a cidade sob toque de recolher imposto pelos bandidos, a ponte consertada com novas tábuas, os caminhões recolhidos nas serrarias e oficinas da região, e os presos já tinham sumido.
- Ficaram no chão apenas as toras de madeira na estrada jogadas de um dos caminhões.
As forças policiais tinham como prova dessa desmoralizante ação, em que o crime mostrou ser mais forte que o Estado brasileiro, os documentos dos presos, cadernos de anotações, celulares e muitas licenças de transporte de madeira emitidas pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Maranhão.
No caminho da volta, o encontro com o crime
Na estradas que ligam terra Awá, grileiros, serrarias e caminhões agem na certeza da impunidade
ESTRADA DE SÃO JOÃO DO CARÚ A ZÉ DOCA, MARANHÃO - Eram 18h35 quando entramos em uma enorme serraria, em Conquista, no Maranhão. Havia sido um dia difícil e ainda estávamos longe de Santa Inês, onde dormiríamos. A equipe da Funai e eu havíamos saído cedo da Aldeia Juriti, na terra Awá, e viajado por estradas de chão, cruzando com carregamentos clandestinos de madeira. A serraria funcionava quase no escuro, iluminada por várias fogueiras ao fundo, e pelos faróis dos enormes caminhões que entravam e saíam do pátio de manobras. O ambiente era soturno. Um enorme caminhão madeireiro vazio deixava o local, outro estava estacionado com 12 toras. Outro, chegava com nove. No chão, pilhas de madeiras já descarregadas.
Tudo informava a natureza ilegal daquela atividade econômica. Quando desci do carro, vi apenas o vulto de um homem se afastando das serras-fitas e outras máquinas que fazem o primeiro processamento da madeira. Eu o chamei. Ele parou. Chamei mais alto, ele hesitou, mas voltou.
Comecei a perguntar. De onde vem a madeira? Quem é o responsável? As respostas eram lacônicas. De vários pontos da penumbra surgiram homens. Onze saíram não se sabe de onde. Levantei o gravador para melhor registrar a conversa, por causa do barulho forte dos motores dos caminhões.
- O responsável? Tá lá atrás. Como é mesmo o nome dele? Acho que é Darlan - disse um.
Outro informou que o dono da serraria se chamava Gilvan. Mas não estava.
- De onde está vindo essa madeira?
- Não sei, porque daqui de dentro eu não saio - disse um.
Perguntei se as árvores tinham sido extraídas da terra indígena, que ficava ali perto.
- Rapaz, a gente não sabe porque encontra a madeira no pátio - respondeu um deles.
- Essa é madeira mista, madeira fraca não vem de terra indígena - garantiu outro.
Havia, segundo Hélio Sotero, da Funai, entre os troncos, ipê, maçaranduba, jatobá com diâmetros que só podem ser encontradas no que resta de floresta no Maranhão, ou seja, em terras indígenas.
- Vocês sabem que tudo isso é crime, não sabem? - perguntei.
- Dependendo das consequências que pegue - respondeu um dos homens.
Quiseram saber se eu era do Ibama. Eu me identifiquei dando nome e local de trabalho e pedi que avisassem ao dono que se quisesse me dar alguma explicação poderia me procurar.
Eles trabalhariam a noite inteira naquele processamento da madeira que depois iria, impunemente, para outras partes do país. Um deles contou que o trabalho iria até às cinco e meia da manhã. As madeireiras daquela região funcionam durante a noite e se escondem, camufladas, atrás de altos tapumes de madeira e árvores plantadas na frente. Passando pelas ruas de pouca iluminação nada se vê. Naquela conseguimos entrar porque o portão estava aberto para a entrada e saída dos caminhões.
No rastro dos caminhões madeireiros
Durante o dia, pela estrada que liga São João do Caru a Paragominas, no Pará, ou na que vai para Zé Doca, no Maranhão, encontramos muitos caminhões madeireiros, vazios ou cheios. Na estrada de chão marcas dos pneus deixavam rastros de que a atividade tinha começado mais intensa este ano.
Havia trechos tão precários nos quais é preferível rejeitar a ponte e arriscar ir pela água.
Após uma curva, vimos de longe, num trecho da estrada que corta a terra indígena, um caminhão parado. Mais perto foi possível constatar o que ele fazia: 23 toras na beira da estrada estavam sendo embarcadas. Três homens manejavam o equipamento de pegar as toras. Abordei o motorista que, para falar comigo, subiu em uma das toras.
- Meu nome é Lenilson Pinheiro.
Ele me informa que está levando a madeira para a cidade de Zé Doca e que o dono da extração é um posseiro da região.
- O senhor é madeireiro?
- Não, sou apenas o transportador.
- Estou vendo muito caminhão trafegando por aí; estão em plena temporada?
- É só agora na época da seca.
- O senhor sabe que isso é crime?
- Realmente é.
- O senhor participa de crime?
- Mas minha profissão é essa.
- O senhor não quer me contar de onde tira e para onde leva a madeira, já que é só transportador?
Lenilson abaixa a cabeça e diz: "É difícil".
Os caminhões madeireiros foram o que mais encontramos naquelas estradas. Numa fazenda, em plena terra dos Awá, o dono não está. O nome é Ronaldo Lage, mora no Piauí, e o funcionário que nos atende diz chamar-se Jairo Real.
- A fazenda ocupa aqui uns 800 hectares. Criamos 450 bois, além de um pequeno plantio de arroz.
A madeira que está no pátio da fazenda, empilhada, é "tirada daqui mesmo", diz ele. Avisei ao funcionário quem eu era e como o dono poderia me encontrar, se quisesse explicar por que tem uma fazenda em terra indígena.
Mais adiante, outra fazenda. Andamos perto da cerca olhando as centenas de bois, até que fomos abordados por um rapaz numa moto. Ele avisou que o dono, senhor Maranhão, viria falar comigo.
O verdadeiro nome de "Maranhão" é Hilário da Silva. Tem 800 cabeças de gado e ocupa, segundo informa, 1.100 hectares da terra.
- Nunca vi índio por aqui - diz ele.
De cima do seu cavalo, o fazendeiro fala com segurança:
- Vamos nos defender, eu só saio daqui tocado, não aceito recado não.
O recado no caso é a ordem judicial para que, já esgotados todos os recursos, desocupem a terra.
- Temos deputados, temos advogados. Vamos fazer uma manifestação e vamos pedir a redução da terra indígena, porque não vamos sair, vamos dar trabalho para o governo.
- O que é dar trabalho para o governo?
- É não sair. Se botar nós fora daqui vai ter que vigiar, senão nós volta. Foi o sindicato, na época do Zé Doca, que assentou a gente aqui. Eu comprei particular e fui entrando aqui dentro. Só saio tocado.
- O que o senhor quer dizer com "sair tocado"?
- Só com recado nós não sai. Por que vamos sair? Os índios não dão conta da terra que têm. Os índios não trabalham. Vem muita gente para a manifestação em São Luis, os deputados, inclusive federais. E nós vamos fazer a CPI da Funai. A senhora sabe não é? Ela está desapropriando o povo daqui.
- Mas é a Justiça que está mandando sair.
- Agora nós vamos descobrir se ela está certa, com a CPI nós vamos descobrir. CPI em Brasília em cima da Funai. Já foi aprovada e nós temos advogado que corre atrás de tudo isso aí.
O fazendeiro ficou o tempo todo da conversa em cima do seu cavalo, do lado de lá da cerca.
Vários funcionários tocavam o gado. Disse que é um pequeno produtor. Quando lembro que seus números não são de pequeno, admite ser médio. E diz que há outros como ele por aquele território. Mas muitos posseiros mais pobres.
- Deve ter uns 20% que são como eu.
Difícil é encontrar polícia
Nas estradas de chão que ligam São João do Carú a Paragominas, abertas por um ex-prefeito de São João que é madeireiro, ou pela estrada que leva até Zé Doca - nome que homenageia um grande incentivador da grilagem - é fácil encontrar grileiro, caminhão madeireiro, serraria ilegal, vários sinais do ataque sistemático ao bem público e à floresta. Difícil é encontrar polícia. Não vi nenhum sinal de repressão ao crime. A única presença do Estado viajava comigo no carro. Eram três funcionários da Funai, que depois fizeram relatórios denunciando o que viram. Passei o dia respirando poeira e carregando a perturbadora sensação de estar numa terra sem lei. Ao olhar nos olhos de grileiro, transportador de madeira, trabalhadores de serraria ilegal o que se vê é que eles nada temem. Sentem-se protegidos pela impunidade.
'Sempre ouvi falar que é terra indígena, mas não sei para onde vou', diz posseiro
POVOADO DO CAJU, POVOADO CABEÇA FRIA, TERRA AWÁ - MARANHÃO - "O Maranhão é grande, mas tudinho tem dono", diz José Ribamar de Araújo que mora num dos vários povoados dentro da Terra Indígena, justificando porque morava em área contestada num estado tão grande. Ele admitiu que desde 1983 soube que era terra indígena. Estava na casa de amigos. Casa de reboco onde há quatro anos mora Jardel dos Santos com sua mulher e enteado.
- Eu estou com a idade de 36 anos e nunca fui numa escola. Eu vou lhe falar, estou dependendo do que ganho aqui. Eu trabalho na roça, trabalho para qualquer um. Sempre ouvi falar que é terra indígena, mas não sei para onde vou - disse Jardel.
Ele almoçava em pé, me ofereceu cadeira e quis dividir o almoço. Sua mulher, Edilene Alves, acompanhava a conversa em silêncio, enquanto lavava a louça. Quem domina a conversa é mesmo José Ribamar, 56 anos, inteligente, bem humorado e também analfabeto. Conta uma história que parece realismo fantástico de antigo grileiro, já morto, Gilberto Andrade, que teria pegado muita terra e um dia morreu debaixo de sua própria carreta. Estava parado num carro, quando sua carreta de madeira bateu no carro.
- Morreu, mas era devedor. Era matador, tirou muita madeira. O homem era cru mesmo. Comeu muito filho alheio - disse ele, querendo dizer com isso que o tal senhor era um assassino.
A conversa flui fácil naqueles povoados.
- Rapaz, se todo mundo sair daqui, eu saio, porque a área falada todo mundo quer ser dono. Eu sei que é terra indígena. Índio caça e nós, quando dá, às vezes mata um bichinho pra comer, mas hoje tem que andar demais para achar caça porque o madeireiro é demais e emocionou a mata - disse José Ribamar de Araújo.
Jardel, o mais jovem, é mais triste.
- Aqui é difícil, não tem luz, a água tem que buscar lá embaixo, sofrimento aqui é grande demais.
Eu não tenho emprego fixo, não tenho letra, tenho que derramar o suor, se todo mundo sair eu saio, mas não é de boa vontade - diz Jardel.
Já Ribamar lamenta a falta de escola em sua vida.
- Eu vejo a senhora, que tem alta mentalidade e muita matemática. Eu queria isso.
Os dois contam que têm estradas ali feitas por madeireiros ou por prefeitos que são madeireiros.
Eu saía da casa, quando ouvi a voz de Edilene.
- Se dessem uma casa pra gente a gente sai, sem ter para onde ir fica ruim.
Mais adiante no povoado Cabeça Fria abordei moradores sentados debaixo de uma grande árvore. Uma mulher de 40 anos que teve derrame no último filho e vive de bolsa família e cujos pais ainda trabalham na roça, das fazendas que ocuparam a terra indígena. Um casal de trabalhadores rurais que trabalha como meeiro participa da conversa. A mulher, Maria Antonia Pinheiro, explica a dificuldade maior do trabalho.
- É muito difícil porque a gente planta arroz e colhe, depois vem o fazendeiro e joga capim braquiária e não dá outra roça de arroz porque o capim cresce. Eles roçam meio mundo de mata e planta capim. O que acaba com o pobre é isso.
Os dois também contaram nunca terem estudado. Perguntei se eles reagiriam caso a Justiça mandasse sair, eles disseram que não.
São essas pessoas que estão sendo chamadas para participar da resistência pelos maiores fazendeiros. Eles foram para lá já sabendo que era área de conservação, mas se dizem sem opções.
Cardozo diz que retirada terá PF, ibama e Exército
Ministro da Justiça programa operação, atrasada pela vinda do Papa, já para este semestre
BRASÍLIA - O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, afirmou que a desintrusão - retirada dos não indígenas da Terra Awá, no Maranhão - será executada neste segundo semestre, e que o governo irá com tudo: "Força Nacional, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Ibama, Funai e apoio logístico das Forças Armadas". Ele admitiu que será difícil. "Sabemos que haverá resistência, mas lá não há ocupantes de boa fé". Cardozo garantiu que "a lei será cumprida" e informou que "o Plano Operacional já foi apresentado ao Judiciário".
Para se concluir que não há ocupantes de "boa fé" - seja grileiros, seja posseiros - foi feito todo um processo de averiguação. Apesar disso, o ministro destacou que haverá dois tipos de tratamento:
- Os posseiros serão incluídos em programas do Incra de reforma agrária. No diálogo com os posseiros atuarão a Funai e a Secretaria Geral da Presidência. Nós sabemos que, como em outros casos, os pobres serão usados pelos grileiros e madeireiros.
Cardozo explicou que essa ação de "desintrusão" vem sendo estudada há algum tempo, mas que era preciso passar a Copa das Confederações e a visita do Papa, que mobilizaram muitos efetivos.
- Agora, as forças estarão concentradas na Operação Awá. Não posso dar detalhes porque eles são sigilosos.
A área da Terra Awá, confirmou o ministro, já foi demarcada e homologada e a ação de desocupação não havia sido realizada antes porque surgiram várias ações na Justiça, e o governo teve que aguardar a decisão.
- Houve a judicialização, mas agora todas as ações foram julgadas e o assunto já transitou em julgado, por isso é a hora da fase da desintrusão. Mas esse é um conjunto complexo de ações que exige a presença da Força Policial.
O ministro disse que o governo aprendeu com a operação de desintrusão da terra Marawatsede no Mato Grosso, onde foram mobilizados 600 homens.
- Foi difícil, porque havia gente armada, preparada para resistir, mas a ação foi bem sucedida.
Nós sabíamos que precisávamos primeiro concluir Marawtsede para em seguida ir para a operação Awá.
A hora, segundo o ministro, é agora, ao longo deste segundo semestre. Nada vai ser fácil. A chegada do Exército lá em junho foi em outra operação, mas deu uma noção da força do crime.
Sebastião Salgado, que acompanhou parte da ação, conta que o Exército encontrou um volume considerável de madeira dentro da floresta:
- Por causa da ação do Ibama, eles usam a própria floresta como local de estocagem da madeira derrubada. Eles calculam que deve ter 40 mil toras de madeira cortadas dentro da mata, o que dá 120 mil m³ de madeira cortada dentro da mata. É praticamente impossível o Exército retirar. Por isso os militares decidiram cortar com motosserra até ficar aqueles toquinhos sem uso comercial.
O fotógrafo acha que só desta forma, com todas as forças do Estado brasileiro, é possível proteger a mata:
- É preciso entender que se fala terra indígena, mas pela lei brasileira a terra é da União.
Portanto, proteger esses índios, expulsar os madeireiros e defender essa mata é do interesse dos brasileiros.
Já a ONG Survival, que trabalha pela preservação do território dos Awá, declarou por e-mail que "a operação chega em um momento crítico". Citou que nos últimos anos "foram fechadas oito madeireiras, mas há ainda um número considerável de serrarias que funcionam na região". Lembrou, por fim, que "até agora a operação não entrou na terra indígena onde ainda ocorre o desmatamento ilegal em um ritmo alucinante".
"O risco ainda é maior para a população de índios isolados que vivem na área e que são extremamente vulneráveis às doenças trazidas pelo contato com os não-índios", completou.
- O responsável? Tá lá atrás. Como é mesmo o nome dele? Acho que é Darlan - disse um.
Outro informou que o dono da serraria se chamava Gilvan. Mas não estava.
- De onde está vindo essa madeira?
- Não sei, porque daqui de dentro eu não saio - disse um.
Perguntei se as árvores tinham sido extraídas da terra indígena, que ficava ali perto.
- Rapaz, a gente não sabe porque encontra a madeira no pátio - respondeu um deles.
- Essa é madeira mista, madeira fraca não vem de terra indígena - garantiu outro.
Havia, segundo Hélio Sotero, da Funai, entre os troncos, ipê, maçaranduba, jatobá com diâmetros que só podem ser encontradas no que resta de floresta no Maranhão, ou seja, em terras indígenas.
- Vocês sabem que tudo isso é crime, não sabem? - perguntei.
- Dependendo das consequências que pegue - respondeu um dos homens.
Quiseram saber se eu era do Ibama. Eu me identifiquei dando nome e local de trabalho e pedi que avisassem ao dono que se quisesse me dar alguma explicação poderia me procurar.
Eles trabalhariam a noite inteira naquele processamento da madeira que depois iria, impunemente, para outras partes do país. Um deles contou que o trabalho iria até às cinco e meia da manhã. As madeireiras daquela região funcionam durante a noite e se escondem, camufladas, atrás de altos tapumes de madeira e árvores plantadas na frente. Passando pelas ruas de pouca iluminação nada se vê. Naquela conseguimos entrar porque o portão estava aberto para a entrada e saída dos caminhões.
No rastro dos caminhões madeireiros
Durante o dia, pela estrada que liga São João do Caru a Paragominas, no Pará, ou na que vai para Zé Doca, no Maranhão, encontramos muitos caminhões madeireiros, vazios ou cheios. Na estrada de chão marcas dos pneus deixavam rastros de que a atividade tinha começado mais intensa este ano.
Havia trechos tão precários nos quais é preferível rejeitar a ponte e arriscar ir pela água.
Após uma curva, vimos de longe, num trecho da estrada que corta a terra indígena, um caminhão parado. Mais perto foi possível constatar o que ele fazia: 23 toras na beira da estrada estavam sendo embarcadas. Três homens manejavam o equipamento de pegar as toras. Abordei o motorista que, para falar comigo, subiu em uma das toras.
- Meu nome é Lenilson Pinheiro.
Ele me informa que está levando a madeira para a cidade de Zé Doca e que o dono da extração é um posseiro da região.
- O senhor é madeireiro?
- Não, sou apenas o transportador.
- Estou vendo muito caminhão trafegando por aí; estão em plena temporada?
- É só agora na época da seca.
- O senhor sabe que isso é crime?
- Realmente é.
- O senhor participa de crime?
- Mas minha profissão é essa.
- O senhor não quer me contar de onde tira e para onde leva a madeira, já que é só transportador?
Lenilson abaixa a cabeça e diz: "É difícil".
Os caminhões madeireiros foram o que mais encontramos naquelas estradas. Numa fazenda, em plena terra dos Awá, o dono não está. O nome é Ronaldo Lage, mora no Piauí, e o funcionário que nos atende diz chamar-se Jairo Real.
- A fazenda ocupa aqui uns 800 hectares. Criamos 450 bois, além de um pequeno plantio de arroz.
A madeira que está no pátio da fazenda, empilhada, é "tirada daqui mesmo", diz ele. Avisei ao funcionário quem eu era e como o dono poderia me encontrar, se quisesse explicar por que tem uma fazenda em terra indígena.
Mais adiante, outra fazenda. Andamos perto da cerca olhando as centenas de bois, até que fomos abordados por um rapaz numa moto. Ele avisou que o dono, senhor Maranhão, viria falar comigo.
O verdadeiro nome de "Maranhão" é Hilário da Silva. Tem 800 cabeças de gado e ocupa, segundo informa, 1.100 hectares da terra.
- Nunca vi índio por aqui - diz ele.
De cima do seu cavalo, o fazendeiro fala com segurança:
- Vamos nos defender, eu só saio daqui tocado, não aceito recado não.
O recado no caso é a ordem judicial para que, já esgotados todos os recursos, desocupem a terra.
- Temos deputados, temos advogados. Vamos fazer uma manifestação e vamos pedir a redução da terra indígena, porque não vamos sair, vamos dar trabalho para o governo.
- O que é dar trabalho para o governo?
- É não sair. Se botar nós fora daqui vai ter que vigiar, senão nós volta. Foi o sindicato, na época do Zé Doca, que assentou a gente aqui. Eu comprei particular e fui entrando aqui dentro. Só saio tocado.
- O que o senhor quer dizer com "sair tocado"?
- Só com recado nós não sai. Por que vamos sair? Os índios não dão conta da terra que têm. Os índios não trabalham. Vem muita gente para a manifestação em São Luis, os deputados, inclusive federais. E nós vamos fazer a CPI da Funai. A senhora sabe não é? Ela está desapropriando o povo daqui.
- Mas é a Justiça que está mandando sair.
- Agora nós vamos descobrir se ela está certa, com a CPI nós vamos descobrir. CPI em Brasília em cima da Funai. Já foi aprovada e nós temos advogado que corre atrás de tudo isso aí.
O fazendeiro ficou o tempo todo da conversa em cima do seu cavalo, do lado de lá da cerca.
Vários funcionários tocavam o gado. Disse que é um pequeno produtor. Quando lembro que seus números não são de pequeno, admite ser médio. E diz que há outros como ele por aquele território. Mas muitos posseiros mais pobres.
- Deve ter uns 20% que são como eu.
Difícil é encontrar polícia
Nas estradas de chão que ligam São João do Carú a Paragominas, abertas por um ex-prefeito de São João que é madeireiro, ou pela estrada que leva até Zé Doca - nome que homenageia um grande incentivador da grilagem - é fácil encontrar grileiro, caminhão madeireiro, serraria ilegal, vários sinais do ataque sistemático ao bem público e à floresta. Difícil é encontrar polícia. Não vi nenhum sinal de repressão ao crime. A única presença do Estado viajava comigo no carro. Eram três funcionários da Funai, que depois fizeram relatórios denunciando o que viram. Passei o dia respirando poeira e carregando a perturbadora sensação de estar numa terra sem lei. Ao olhar nos olhos de grileiro, transportador de madeira, trabalhadores de serraria ilegal o que se vê é que eles nada temem. Sentem-se protegidos pela impunidade.
'Sempre ouvi falar que é terra indígena, mas não sei para onde vou', diz posseiro
POVOADO DO CAJU, POVOADO CABEÇA FRIA, TERRA AWÁ - MARANHÃO - "O Maranhão é grande, mas tudinho tem dono", diz José Ribamar de Araújo que mora num dos vários povoados dentro da Terra Indígena, justificando porque morava em área contestada num estado tão grande. Ele admitiu que desde 1983 soube que era terra indígena. Estava na casa de amigos. Casa de reboco onde há quatro anos mora Jardel dos Santos com sua mulher e enteado.
- Eu estou com a idade de 36 anos e nunca fui numa escola. Eu vou lhe falar, estou dependendo do que ganho aqui. Eu trabalho na roça, trabalho para qualquer um. Sempre ouvi falar que é terra indígena, mas não sei para onde vou - disse Jardel.
Ele almoçava em pé, me ofereceu cadeira e quis dividir o almoço. Sua mulher, Edilene Alves, acompanhava a conversa em silêncio, enquanto lavava a louça. Quem domina a conversa é mesmo José Ribamar, 56 anos, inteligente, bem humorado e também analfabeto. Conta uma história que parece realismo fantástico de antigo grileiro, já morto, Gilberto Andrade, que teria pegado muita terra e um dia morreu debaixo de sua própria carreta. Estava parado num carro, quando sua carreta de madeira bateu no carro.
- Morreu, mas era devedor. Era matador, tirou muita madeira. O homem era cru mesmo. Comeu muito filho alheio - disse ele, querendo dizer com isso que o tal senhor era um assassino.
A conversa flui fácil naqueles povoados.
- Rapaz, se todo mundo sair daqui, eu saio, porque a área falada todo mundo quer ser dono. Eu sei que é terra indígena. Índio caça e nós, quando dá, às vezes mata um bichinho pra comer, mas hoje tem que andar demais para achar caça porque o madeireiro é demais e emocionou a mata - disse José Ribamar de Araújo.
Jardel, o mais jovem, é mais triste.
- Aqui é difícil, não tem luz, a água tem que buscar lá embaixo, sofrimento aqui é grande demais.
Eu não tenho emprego fixo, não tenho letra, tenho que derramar o suor, se todo mundo sair eu saio, mas não é de boa vontade - diz Jardel.
Já Ribamar lamenta a falta de escola em sua vida.
- Eu vejo a senhora, que tem alta mentalidade e muita matemática. Eu queria isso.
Os dois contam que têm estradas ali feitas por madeireiros ou por prefeitos que são madeireiros.
Eu saía da casa, quando ouvi a voz de Edilene.
- Se dessem uma casa pra gente a gente sai, sem ter para onde ir fica ruim.
Mais adiante no povoado Cabeça Fria abordei moradores sentados debaixo de uma grande árvore. Uma mulher de 40 anos que teve derrame no último filho e vive de bolsa família e cujos pais ainda trabalham na roça, das fazendas que ocuparam a terra indígena. Um casal de trabalhadores rurais que trabalha como meeiro participa da conversa. A mulher, Maria Antonia Pinheiro, explica a dificuldade maior do trabalho.
- É muito difícil porque a gente planta arroz e colhe, depois vem o fazendeiro e joga capim braquiária e não dá outra roça de arroz porque o capim cresce. Eles roçam meio mundo de mata e planta capim. O que acaba com o pobre é isso.
Os dois também contaram nunca terem estudado. Perguntei se eles reagiriam caso a Justiça mandasse sair, eles disseram que não.
São essas pessoas que estão sendo chamadas para participar da resistência pelos maiores fazendeiros. Eles foram para lá já sabendo que era área de conservação, mas se dizem sem opções.
Cardozo diz que retirada terá PF, ibama e Exército
Ministro da Justiça programa operação, atrasada pela vinda do Papa, já para este semestre
BRASÍLIA - O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, afirmou que a desintrusão - retirada dos não indígenas da Terra Awá, no Maranhão - será executada neste segundo semestre, e que o governo irá com tudo: "Força Nacional, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Ibama, Funai e apoio logístico das Forças Armadas". Ele admitiu que será difícil. "Sabemos que haverá resistência, mas lá não há ocupantes de boa fé". Cardozo garantiu que "a lei será cumprida" e informou que "o Plano Operacional já foi apresentado ao Judiciário".
Para se concluir que não há ocupantes de "boa fé" - seja grileiros, seja posseiros - foi feito todo um processo de averiguação. Apesar disso, o ministro destacou que haverá dois tipos de tratamento:
- Os posseiros serão incluídos em programas do Incra de reforma agrária. No diálogo com os posseiros atuarão a Funai e a Secretaria Geral da Presidência. Nós sabemos que, como em outros casos, os pobres serão usados pelos grileiros e madeireiros.
Cardozo explicou que essa ação de "desintrusão" vem sendo estudada há algum tempo, mas que era preciso passar a Copa das Confederações e a visita do Papa, que mobilizaram muitos efetivos.
- Agora, as forças estarão concentradas na Operação Awá. Não posso dar detalhes porque eles são sigilosos.
A área da Terra Awá, confirmou o ministro, já foi demarcada e homologada e a ação de desocupação não havia sido realizada antes porque surgiram várias ações na Justiça, e o governo teve que aguardar a decisão.
- Houve a judicialização, mas agora todas as ações foram julgadas e o assunto já transitou em julgado, por isso é a hora da fase da desintrusão. Mas esse é um conjunto complexo de ações que exige a presença da Força Policial.
O ministro disse que o governo aprendeu com a operação de desintrusão da terra Marawatsede no Mato Grosso, onde foram mobilizados 600 homens.
- Foi difícil, porque havia gente armada, preparada para resistir, mas a ação foi bem sucedida.
Nós sabíamos que precisávamos primeiro concluir Marawtsede para em seguida ir para a operação Awá.
A hora, segundo o ministro, é agora, ao longo deste segundo semestre. Nada vai ser fácil. A chegada do Exército lá em junho foi em outra operação, mas deu uma noção da força do crime.
Sebastião Salgado, que acompanhou parte da ação, conta que o Exército encontrou um volume considerável de madeira dentro da floresta:
- Por causa da ação do Ibama, eles usam a própria floresta como local de estocagem da madeira derrubada. Eles calculam que deve ter 40 mil toras de madeira cortadas dentro da mata, o que dá 120 mil m³ de madeira cortada dentro da mata. É praticamente impossível o Exército retirar. Por isso os militares decidiram cortar com motosserra até ficar aqueles toquinhos sem uso comercial.
O fotógrafo acha que só desta forma, com todas as forças do Estado brasileiro, é possível proteger a mata:
- É preciso entender que se fala terra indígena, mas pela lei brasileira a terra é da União.
Portanto, proteger esses índios, expulsar os madeireiros e defender essa mata é do interesse dos brasileiros.
Já a ONG Survival, que trabalha pela preservação do território dos Awá, declarou por e-mail que "a operação chega em um momento crítico". Citou que nos últimos anos "foram fechadas oito madeireiras, mas há ainda um número considerável de serrarias que funcionam na região". Lembrou, por fim, que "até agora a operação não entrou na terra indígena onde ainda ocorre o desmatamento ilegal em um ritmo alucinante".
"O risco ainda é maior para a população de índios isolados que vivem na área e que são extremamente vulneráveis às doenças trazidas pelo contato com os não-índios", completou.