"Brasil gasta pouco e mal em saneamento"

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Os obstáculos que entravam a expansão da cobertura dos serviços de saneamento no Brasil vão muito além da escassez de recursos. Os déficits de atendimento de água e esgoto são resultado de um emaranhado de falhas que inclui falta de vontade política, ineficiência, inexistência de regulação e carência de planejamento. O diagnóstico é de um especialista que há seis anos avalia o desempenho do setor no Brasil, o engenheiro civil Adauto Santos, consultor do Ministério das Cidades e autor dos relatórios do SNIS (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento) — o principal estudo sobre a atuação das prestadoras de serviço em água e saneamento no país.

Consultor em saneamento desde 1989, ele é o debatedor desta semana do Fórum sobre o Relatório de Desenvolvimento Humano, e vai discutir com os internautas se o saneamento tem sido uma prioridade no Brasil.

Santos admite, em entrevista à PrimaPagina, que os recursos disponibilizados para o setor estão aquém do necessário para universalizar o atendimento em 20 anos, mas atribui a “morosidade” dos avanços no setor também à situação financeira dos prestadores de serviços, à não-priorização dos serviços por parte das três esferas de governo; à ineficiência na aplicação dos recursos e às decisões administrativas tomadas em função de “outros interesses que não meramente os técnicos, econômicos e ambientais”.

O especialista ainda vê responsabilidade da população na desatenção ao setor. “Se por um lado não há priorização por parte dos governos para o saneamento, por outro a população também colabora para essa situação, quando não compreende a importância do setor e não o valoriza”, afirma. “Como exemplo, pode-se citar as constantes reclamações da população em função das tarifas praticadas para o abastecimento de água e esgotamento sanitário, sendo possível ouvir que é um absurdo o custo de R$ 2,00 para um metro cúbico [1 mil litros] de água. Entretanto, esse mesmo indivíduo paga mais de R$ 2,00 por uma latinha de refrigerante ou cerveja, ou mesmo em um pacote de cigarros, sem nenhuma reclamação. A mudança do entendimento do que seja o setor, por parte da população, é fundamental”, frisa.

Na entrevista, concedida por e-mail, ele faz um balanço do que percebeu ao longo dos seis anos avaliando as empresas que prestam serviços de água e esgoto no Brasil. Confira abaixo os principais trechos.

É consenso entre os especialistas que o saneamento requer investimentos elevados e que os resultados só são perceptíveis no médio prazo. Esse alto custo das obras no setor às vezes é apontado como justificativa para os déficits de cobertura no Brasil. Paralelamente a isso, no cenário político-eleitoral, o saneamento quase nunca aparece como prioridade nos planos de governo, como foi a fome e, mais recentemente, a educação. Nesse sentido, o saneamento no Brasil não avança por falta de vontade política ou por que o país não tem dinheiro para isso?

Adauto Santos — A primeira questão a responder se refere ao avanço ou não do saneamento no Brasil. Entendo que o atual governo federal, por meio da Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental, está empreendendo um enorme esforço no sentido de proporcionar eficiência na aplicação dos recursos financeiros disponíveis. Foram criados critérios para análise e seleção de pleitos e exigidos compromissos por parte do tomador dos recursos. O projeto de lei que trata da Política Nacional de Saneamento Básico (5.296/2005), após discussão ampla com a sociedade e com o setor de saneamento, encontra-se no Congresso para ser votado em regime de urgência. Foram criados e/ou implementados programas no intuito de proporcionar eficiência para os prestadores de serviços (PMSS, RECESA, Água para Todos etc.). O saneamento pode não estar avançando no Brasil quando se levantam os índices operacionais, mas certamente está havendo um enorme esforço no sentido de estruturá-lo no aspecto institucional e de gestão e regulação.

Apesar desse esforço, os recursos disponibilizados para o setor são inferiores às necessidades para garantir a universalização em um período de 20 anos. Mas a morosidade no avanço dos indicadores ocorre, também, em função de outros fatores: 1) situação financeira dos prestadores de serviços, que não permite investimentos de montantes significativos com recursos próprios e contração de empréstimos; 2) não-priorização dos governos (federal, estaduais e municipais); 3) ineficiência na aplicação dos recursos (há inúmeras obras inacabadas, unidades implantadas que não produzem benefícios à população e unidades com problemas operacionais); 4) obras implantadas por outros interesses que não meramente os técnicos, econômicos e ambientais.

Pelo que se observa, o saneamento no Brasil não avança tanto por carência de recursos financeiros quanto por vontade política, mas também por ineficiência na aplicação dos recursos, inexistência de regulação, carência de planejamentos a longo prazo.

E essa ineficiência não é, em última instância, falta de empenho político? Como essa má gestão interfere no desempenho do setor?

Santos — Os próprios governos são os responsáveis por diversas dessas situações, destacando-se a interrupção no repasse de recursos financeiros, a celebração de convênios sem projetos adequados e a deficiência no acompanhamento da execução das obras. Outro fato importante que ocorre com certa freqüência é alocação de recursos públicos de maneira incorreta e inadequada, sem a fiscalização das suas aplicações e muito menos a avaliação dos seus resultados. Ressalte-se, ainda, outra situação freqüente: a paralisação de obras em função da não-prestação de contas por parte do conveniado.

Além da magnitude do desperdício, observa-se a indiferença e irresponsabilidade com que as obras inacabadas vêm sendo tratadas ao longo do tempo pelas autoridades públicas, principalmente pela não-alocação de recursos orçamentários necessários às suas conclusões, enquanto outras obras são iniciadas. Uma obra inacabada representa um enorme prejuízo ao país e principalmente à sua população, tanto em função do desperdício de recursos sabidamente escassos quanto da possibilidade de manipulação político-eleitoral, com promessas de busca de novos recursos para sua conclusão.

Se o problema é, pelo menos em parte, a falta de recursos, a necessidade de solucioná-lo justifica mudanças em outras áreas, como, por exemplo, uma possível alteração da política econômica a fim de disponibilizar mais recursos para o acesso à água e saneamento?

Santos — Se por um lado não há priorização por parte dos governos para o saneamento, por outro a população também colabora para essa situação, quando não compreende a importância do setor e não o valoriza. Como exemplo, podem-se citar as constantes reclamações da população em função das tarifas praticadas para o abastecimento de água e esgotamento sanitário, sendo possível ouvir que é um absurdo o custo de R$ 2,00 para um metro cúbico [1 mil litros] de água. Entretanto, esse mesmo indivíduo paga mais de R$ 2,00 por uma latinha de refrigerante ou cerveja, ou mesmo em um pacote de cigarros, sem nenhuma reclamação. A mudança do entendimento do que seja o setor, por parte da população, é fundamental.

Sem dúvida nenhuma que o setor necessita de mais recursos, mas somente o aporte desses recursos não é suficiente para que realmente se tenham sistemas eficientes, regulares e eficazes. Há necessidade de ações que atinjam outros objetivos.

O sr. poderia citar exemplo?

Santos — Programas de educação sanitária e ambiental que visem: conscientizar a população no que se refere à utilização sustentável dos recursos hídricos, à utilização adequada dos sistemas de abastecimento de água, esgotamento sanitário, manejo de águas pluviais urbanas e manejo de resíduos sólidos; a ampliação da visão do setor saneamento — que atualmente se restringe a intervenções físicas para a maioria da população —, possibilitando uma visão que englobe os aspectos de operação, manutenção, sustentabilidade econômica e ambiental, além dos aspectos sociais e de saúde pública.

- Criação de fóruns de discussões que possibilitem a participação da sociedade, das prefeituras, dos prestadores de serviços e dos órgãos ambientais envolvidos nas discussões e priorizações das ações a serem desenvolvidas, bem como a adoção de soluções integradas no intuito de racionalizar a aplicação dos recursos financeiros disponíveis.

- Fortalecimento institucional, incluindo melhoria das estruturas operacionais dos prestadores de serviços, com o desenvolvimento dos seguintes pressupostos: 1) automação dos sistemas; 2) instalação de macromedição; 3) universalização da micromedição; 4) programas de educação sanitária; 5) programas de qualificação da mão-de-obra utilizada pelas prestadoras de serviços objetivando a ação rápida do operador local, por exemplo, no controle de vazamentos nas unidades de distribuição de água, bem como extravasamentos nas unidades de coleta de esgotos.

Se por um lado tem-se necessidade de ampliar os recursos disponíveis para o setor, por outro tem-se a obrigação de melhorar a eficiência e a eficácia na prestação dos serviços, com a redução dos custos operacionais.

Os dados do SNIS indicam que a cobertura de esgoto estagnou entre 2001 e 2004, apesar de as tarifas terem aumentado 41% e os investimentos, 22,8%. As empresas investem mal?

Santos — Por todo o exposto anteriormente, não há dúvidas de que os investimentos realizados necessitam de um maior controle, planejamento, acompanhamento etc., para que se tenha reduzida a ineficiência da sua aplicação.

Os números de 2005 da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) mostram que há pelo menos quarto anos a cobertura de esgoto no Brasil avança lentamente. Os números do SNIS (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento) mostram estagnação entre 2000 e 2004. Quais são os obstáculos que mais impedem a expansão do atendimento no Brasil?

Santos — Os principais obstáculos para a expansão dos índices de atendimento de esgotamento sanitário são: a baixa capacidade de pagamento da população (as tarifas mal cobrem os custos da prestação dos serviços); a ineficiência na aplicação dos recursos financeiros; os conflitos na prestação dos serviços entre municípios e entidades detentoras da concessão; os indícios de irregularidades na aplicação de recursos — que vão desde o processo licitatório até o desvio de recursos com a aplicação em outras atividades não previstas no objeto de contrato, proporcionando paralisação das obras —; os projetos megalômanos ou pequenas obras não inseridas em um planejamento macro e de interesse coletivo; a falta de controle que se verifica em órgãos dos governos, decorrentes da desorganização geral do Estado, em que as funções de controle são relegadas a segundo plano; e os recursos financeiros insuficientes.

A PNAD mostra também que em alguns Estados o atendimento regrediu. Nesse sentido, os desafios para avançar no setor passam mais por ações regionais ou nacionais?

Santos — Sem dúvida alguma, a inexistência de uma Política Nacional de Saneamento Básico e de um marco regulatório para o setor proporcionam situações das mais diversas em cada unidade da Federação. O primeiro passo para garantir condições mínimas para o avanço sustentável para o setor é a existência de uma política nacional associada a ações de regulação, gestão, planejamento e controle social.

O Relatório de Desenvolvimento Humano 2006 apresenta diversos exemplos de projetos inovadores e de baixo custo nas áreas de abastecimento de água, coleta de esgotos e gestão dos recursos hídricos — entre eles três experiências brasileiras: Porto Alegre (com uma autarquia municipal que oferece serviço com qualidade e eqüidade), Brasília (esgoto condominial) e Ceará (gestão dos recursos hídricos). Uma das alternativas para ampliar o atendimento no país não seria replicar essas iniciativas?

Santos — Não somente replicar, mas adaptá-las às realidades de cada unidade da Federação. Além dessas experiências, podem ser citadas as Centrais de Associações Comunitárias para a Manutenção e Operação de Sistemas de Abastecimento e Água, na Bahia, e o SISAR (Sistema Integrado de Saneamento Rural), no Ceará e Piauí.

O que deve ser feito para que o Brasil cumpra as metas dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio que prevêem reduzir à metade, em relação a 1990, os déficits de cobertura de água e esgoto até 2015?

Santos — Implementar uma política nacional de saneamento básico, instituir um marco regulatório para o setor, investir no fortalecimento institucional dos prestadores de serviços, divulgar e aplicar as experiências exitosas na prestação dos serviços, possibilitar a participação da população no planejamento das ações e ampliar os recursos disponibilizados para o setor, tanto na elevação dos montantes quanto na redução dos gastos.

O relatório do PNUD afirma que o fato de as prestadoras de serviço em saneamento serem de natureza pública ou privada não influencia a eficiência e aponta a regulamentação como instrumento crucial para garantir a equidade do atendimento. Sob esse prisma, em que medida o marco regulatório, a Política Nacional de Saneamento, pode contribuir para ampliar a cobertura dos serviços?

Santos — A Política Nacional de Saneamento deverá estabelecer “as diretrizes gerais aplicáveis a todos os serviços de saneamento básico, e, também, diretrizes específicas do abastecimento de água, do esgotamento sanitário, do manejo de resíduos sólidos e do manejo de águas pluviais urbanas. Essas diretrizes deverão fixar caminhos para o planejamento, para a regulação e fiscalização, para a complementaridade de serviços, para a delegação (ou seja, concessão), e para os aspectos econômico-financeiros (isto é: critérios para definir tarifas), ao mesmo tempo em que explicita os direitos dos usuários, inclusive os de fiscalizar os serviços e receber e ter acesso a serviços permanentemente fiscalizados”. A implementação dessas diretrizes certamente contribuirá para a melhoria dos prestadores de serviços, dos serviços prestados e para a ampliação de suas coberturas.

A ampliação do atendimento implica levar saneamento para os mais pobres. Mas eles nem sempre podem pagar pelo serviço. Como resolver isso?

Santos —A solução dessa questão passa necessariamente pelo entendimento entre as partes envolvidas: titulares dos serviços, prestadores de serviços e população envolvida. Nesse aspecto é importante destacar algumas experiências já ocorridas no Brasil, como é o caso de Natal, onde a agência reguladora municipal discutiu com o prestador de serviços (de abrangência regional, a CAERN — Companhia de Água e Esgoto do Rio Grande do Norte) a prestação dos serviços e a tarifa. Fato similar também ocorreu em Belo Horizonte.

Uma parte considerável da água captada pelas empresas não chega ao consumidor final, por falha de manutenção nas tubulações. É possível estimar de quanto é essa perda?

Santos — Pelos dados do SNIS, versão preliminar do Diagnóstico 2005, os índices de perdas de distribuição nos prestadores de serviços são: abrangência regional (44,5%); abrangência microrregional (46,8%); abrangência local de direito público (38,5%), abrangência local de direito privado (41,9%), abrangência local empresa privada (47,5%).

Quem paga por essa ineficiência?

Santos — A população, por meio das tarifas.

(Fonte: Alan Infante / PNUD Brasil)

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