Carioca que divide o tempo entre o Rio e o Xingu denuncia devastação em Mato Grosso

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Formada em história na PUC, Maria Eduarda Souza apaixonou-se pela causa indígena e acaba de voltar de um fórum na ONU


Ludmilla de Lima | O Globo

RIO — “Estou no Xingu para a revitalização da Escola Mavutsinín. Retorno dia 13 de abril. Conexão limitada até meu retorno”, avisava em março uma resposta automática enviada pelo correio eletrônico da historiadora carioca Maria Eduarda Souza. Na mensagem, ela terminava com um “ekatu nekopy — obrigada em tupi kamayurá”. No fim de abril, ainda era impossível um contato pessoal com Duda no Rio. Por e-mail, ela dizia que a entrevista só poderia ocorrer em maio, já que viajara direto do Xingu para Nova York, onde participava do Fórum Permanente para Questões Indígenas na ONU. Seu papel era de assessora do Cacique Kotok Kamayurá, representante no encontro de 16 povos do Xingu. Coube a ela traduzir nas Nações Unidas uma denúncia sobre a degradação ambiental, o uso de pesticidas e o avanço do agronegócio em volta das terras indígenas em Mato Grosso.


Duda na oca do Parque Lage: discurso contra o desmatamento em Mato Grosso, o uso de pesticidas e a polêmica PEC 215 - Ana Branco / Agência O Globo

Duda completa nesta segunda-feira 25 anos. Há seis, pisou pela primeira vez no Xingu e assistiu a uma cerimônia do Quarup, de lutas e danças em homenagem aos mortos. Foi como uma iniciação. Ela diz que, desde então, é outra pessoa. Este ano, Duda passou metade do tempo ao lado dos kamayurás, povo com o qual mantém uma relação familiar. Quando está no Rio, trabalha na articulação de projetos para a Aldeia Ipavu (do povo kamayurá), por meio da organização que criou no ano passado, a Terra Comum. À frente do instituto e usando a ferramenta de financiamento coletivo, conseguiu viabilizar recursos para a reforma — com técnicas de bioconstrução — da escola kamayurá.

Foi seu primeiro projeto grande e que envolveu o engajamento de outras pessoas. Essa história ela conta durante entrevista numa sala do espaço Templo, de coworking, na Gávea. No papo, ela esboça um ar de felicidade ao revelar que, desde o fim do ano passado, quando está na aldeia, dorme na oca da família do cacique Kotok, onde vivem de 30 a 40 pessoas. O convite do chefe foi como uma prova de aceitação.

— Sempre ficava no alojamento para visitantes. Mas o cacique me convidou e concluí que era a hora. Fiquei alguns dias e me senti da família. Hoje ele me chama de minha filha — relata Duda, contando também que recebe cuidados de filha de uma das três mulheres do cacique.

Na aldeia, Duda também virou exímia pescadora de tucunarés:

— Na aldeia, me desprendi de coisas pequenas. Aprendi a dormir em rede e a me alimentar de um jeito que me agrada muito (saudável, à base de biju, tapioca e peixe). Lá o tempo é outro, as pessoas falam devagar. Isso é uma mega lição.

‘RADICAL E GUERRILHEIRA’

Ex-aluna da PUC, no Rio seu endereço é Botafogo, onde vive com a mãe, a advogada Andreia Gomes, o padrasto, o arquiteto Paulo Guimarães, e duas irmãs mais novas. Diz que herdou do pai, o administrador Eduardo Souza, a paixão pela natureza. Ela mede as palavras ao tratar da questão indígena, porque não quer “ofender ninguém". Contra qualquer risco de ser vista como “menina lourinha da Zona Sul", rebate, definindo-se como “radical e guerrilheira”. E pede espaço para falar de temas polêmicos como a PEC 215, que transfere do Executivo para o Legislativo a aprovação da demarcação de terras indígenas.

— O Xingu está se tornando uma ilha de florestas rodeada por fazendas que geram impactos negativos para a qualidade da água, do solo e do ar. E que provocam ainda o assoreamento de rios — afirma, batendo mais. — O Brasil é o maior consumidor mundial de agrotóxicos. Nosso país está sendo envenenado e a sociedade civil parece não enxergar. A aprovação do Novo Código Florestal, em 2008, a PEC 215 e outros projetos de lei ameaçam os direitos de todos nós.

Sua primeira vez no Xingu foi como um despertar. Aos 18 anos, viajou para a região ao lado do padrasto. Ele visitava terras limítrofes ao parque nacional indígena, das quais virou sócio e que hoje são destinadas à preservação. A incursão envolveu a ida às aldeias Yawalapiti e Kalapalo. Foi o suficiente para Duda estabelecer um norte para sua vida. De volta ao Rio, começou a pesquisar sobre o Quarup e o Xingu. E a curiosidade evoluiu para novas conexões, leituras e amizades.

— Foi uma vocação natural que ela descobriu. Diria que acidentalmente — diz o padrasto, cujo pai foi presidente da Funai. — É um caminho que não seria a escolha óbvia de uma jovem com o perfil dela.

O processo de aprendizado inclui uma viagem de seis meses a Botsuana, na África, onde acompanhou uma ONG que atua em projetos de capacitação em comunidades locais. As escolhas de Duda nem sempre são fáceis para a família:

— Qual mãe não ficaria preocupada com a filha, que, em vez de estar na Praia do Leblon, está reformando uma escola no Xingu? E sem telefone, sem e-mail? — questiona Paulo.

Foram muitas viagens à Aldeia Ipavu até conquistar a confiança do povo e conseguir desenvolver projetos em apoio. A distância cultural e o quão delicada é essa aproximação podem ser medidos pela peregrinação que Duda enfrenta para chegar lá: um voo para Brasília, 16 horas num ônibus noturno até a cidade de Canarana, mais três de caminhão e outras seis de barco.

Maria Paula Fernandes, diretora da ONG Uma Gota No Oceano (da qual Duda já foi voluntária), lembra que a jovem abraçou a causa antes mesmo dos protestos de 2013:

— Renovo meu entusiasmo ao ver uma menina Zona Sul, linda, loura, e com todos os recursos para se deixar levar pela alienação, se encantar e trabalhar com a cultura indígena — diz. — Como não é uma especialista, pode incorrer num erro ou outro na forma de atuar. Mas é pessoa de coração e interesse enormes.

A historiadora faz muitos planos. Quer continuar no trabalho de campo e pensa em cursar um mestrado em antropologia. Mais adiante, gostaria de estar numa organização maior para concretizar seus projetos, como o da aldeia autossustentável, e ser uma porta-voz da causa.

— Para entender toda essa dedicação e amor, para sentir na própria pele, só indo lá (no Xingu) — manda o recado Duda, que parece ter incorporado o espírito guerreiro da sua tribo na defesa do que acredita: — Sou casca grossa, não estou de brincadeira.


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